Sancionada em dois de agosto de 2010, a lei n. 12305, que institui a Política Nacional de Resíduos Sólidos, representa um “verdadeiro divisor de águas que se ergue entre um antes e um depois”, diz Antonio Cechin à IHU On-Line. Há 30 anos trabalhando em galpões com comunidades ecológicas, ecumênicas e eclesiais de base, o irmão marista menciona que a lei proporcionou um salto qualitativo no trabalho dos catadores de resíduos. “Quando começaram juntos, há 30 anos, tinham vergonha de ser fotografados. Hoje, eles têm verdadeiro orgulho em posar para fotos no trabalho, porque se sentem dentro de uma profissão absolutamente necessária para a sobrevida da espécie humana na terra”, compara.
Apesar de ter transformado as relações de trabalho da “catação à moda artesanal” para a “reciclagem profissional”, “por enquanto nada mudou em Porto Alegre”, diz Cechin. Para ele, a política que alterou a lei n. 9605, de 1998, ainda “é uma esperança, na torcida por bons projetos a fim de se angariar recursos”.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, Cechin também comenta o processo de coleta seletiva do lixo na capital gaúcha e região metropolitana. Para ele, o novo modelo de depósito do lixo em contêineres é “um retrocesso dentro da política de administração dos resíduos”. Ele explica: “Faltou a preparação da população. Para que qualquer mudança nos costumes do povo tenha êxito, faz-se necessário um trabalho prévio de conscientização com larga duração”.
Antonio Cechin formou-se em Letras Clássicas e em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS, onde também foi professor. Fez sua pós-graduação no Centro de Economia e Humanismo, em Paris. Iniciou na Instituição Católica de Paris a especialização em catequese, quando foi chamado para o Vaticano, na Sagrada Congregação dos Ritos, no início da década de 1960. Depois, retornou ao Brasil e iniciou a luta junto aos movimentos sociais. É autor do livro Empoderamento Popular. Uma pedagogia de libertação (Porto Alegre: Estef, 2010).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Qual é o destino do lixo produzido em Porto Alegre e região metropolitana?
Antonio Cechin – Em Porto Alegre, dentro da era da ecologia em que estamos entrando, graças a José Lutzemberger, o lixo começou a ser classificado em duas categorias: o orgânico e o seco. O orgânico costumava ser jogado nos chamados lixões a céu aberto; posteriormente foi sendo enterrado nos denominados aterros sanitários. Esgotada a capacidade de tais aterros, que de sanitários pouco ou quase nada tinham, a cidade passou a transportar seus rejeitos para o município de Minas do Leão, que até hoje recebe os detritos de 120 outros municípios da região metropolitana e de muitos outros, mais afastados ainda, como é caso do município de Bento Gonçalves.
Nos últimos dias, as ruas de Porto Alegre estão recebendo em cada uma de suas quadras e praças, milhares de contêineres e cada um dos moradores, lojas, fábricas, casas de comércio, etc. receberam a determinação, por parte do governo municipal, de depositar o lixo orgânico e, somente esta categoria, nesses recipientes que foram objeto de uma licitação pública, vencida por uma empresa multinacional.
A população da capital, ao que tudo indica, está tendo dificuldade em se acostumar ao novo sistema de contêineres. Os jornais dos últimos dias estamparam os incêndios que aconteceram de imediato em mais de uma dezena desses recipientes públicos. A prefeitura está no encalço dos vândalos incendiários através do poder de polícia. A investigação trabalha com duas hipóteses: ou vandalismo propriamente dito ou sabotagem criminosa do lobby do lixo por parte de empresas congêneres, que perderam a oportunidade de fazer muito dinheiro.
A equipe do Lutzemberger começou o cuidado com o lixo por meio da separação, em duas sacolas plásticas diferentes, de cada uma das modalidades – orgânico e seco –, a partir de uma experiência piloto com dois ou três edifícios de apartamentos. Logo em seguida, a Igreja Católica em seu modelo latino-americano, caracterizado por sua opção pelos pobres, entrou com força na área da reciclagem, com as Comunidades Eclesiais de Base, dessa vez de maneira coletiva. Surgiu assim, no início dos anos 1980, o primeiro coletivo de triagem ou separação do lixo seco, no Galpão da Ilha Grande dos Marinheiros, situado no bairro Arquipélago. Uma Comunidade Eclesial de Base caracterizou-se também como Comunidade Ecológica de Base através do trabalho com resíduos sólidos. A triagem dos materiais passou a garantir a sobrevivência para famílias de extrema pobreza. A prefeitura da capital, face ao sucesso desses Galpões de Economia eminentemente comunitária, lançou, então, a Coleta Seletiva em toda a cidade. Hoje, os Galpões são em número de 17, espalhados pelas periferias.
IHU On-Line – Quais são, hoje, os principais dilemas ambientais da capital gaúcha e da região metropolitana em relação aos resíduos sólidos?
Antonio Cechin – A modalidade atual licitada pelo governo municipal que pressiona cada morador e moradora da cidade a depositar seu lixo orgânico, e somente esse, em contêineres colocados em todas as quadras de ruas e praças, em nosso entender significa um retrocesso dentro da política de administração dos resíduos.
Faltou a preparação da população. Para que qualquer mudança nos costumes do povo tenha êxito, faz-se necessário um trabalho prévio de conscientização com larga duração. Do contrário, é sempre a lei do menor esforço que prevalece. O resultado aí está. Em vez de as pessoas fazerem a separação, dentro das próprias casas, do lixo orgânico numa sacola e o lixo seco noutra, agora a maioria nem separa mais. Num único saco plástico vai para os contêineres seco e orgânico misturados. Basta ver o rodízio que fazem carrinheiros e separadores individuais, percorrendo todos os contêineres, ao longo de ruas e praças, aí fazendo sua coleta bem à vontade. Antes, percorriam casa por casa, loja por loja. Nossa previsão é também que a coleta seletiva do lixo seco venha a diminuir.
Na primeira etapa da criação dos Galpões de Reciclagem ou Coletivos de Trabalho, a coleta seletiva era feita diretamente pelo poder público municipal. A atual administração da cidade, que já dura sete anos, decidiu privatizar também a coleta seletiva. Ora, uma empresa particular tem como objetivo essencial o lucro. Consequentemene, se não houver uma boa fiscalização por parte do poder público, os resíduos de mais valor não irão para a reciclagem comunitária dos catadores, mas ficarão nas mãos da empresa coletora. As horas de trabalho nos coletivos diminuem também, com a tendência de dispensarem trabalhadores pobres que necessitam garantir o ganho para sua sobrevivência.
Nos primeiros coletivos de trabalho em Porto Alegre, além de um pró-labore nunca menor do que o salário mínimo legal, era garantida a contribuição previdenciária como autônomo. Neste caso, quando algum catador fica doente, não necessita do fruto da partilha dos colegas cooperativados. Hoje, não conhecemos mais em Porto Alegre nenhum Coletivo que garanta o direito a uma aposentadoria digna para seus catadores.
O maior desafio para os Coletivos de Trabalho de Porto Alegre está na necessidade de eles se apropiarem de toda a coleta seletiva feita por eles mesmos como prevê a Lei Lula. Assim como este ato – elo inicial de toda a cadeia produtiva –, também na outra ponta, no elo final – isto é, a venda dos resíduos devidamente prensados e também os objetos frutos de artesanato com sucata ou devidamente reciclados pelos próprios catadores –, absolutamente toda a cadeia produtiva da economia dos resíduos pertence, por lei, aos catadores.
Em Porto Alegre, a venda dos materiais, em vez de ser diretamente dos catadores diretamente para as indústrias ou para os consumidores, é feita para atravessadores que ficam com dinheiro fácil, uma vez que dispõem de grandes depósitos em que podem estocar e calcular valores de venda também de acordo com as oportunidades e as épocas de safra.
IHU On-Line – Que avaliação faz da Política Nacional de Resíduos Sólidos? O que mudou após a implantação da Política Nacional de Resíduos Sólidos?
Antonio Cechin – O exército dos voluntários da catação, no Brasil, é constituído de bem mais de um milhão de catadores. O operário metalúrgico e ex-presidente Lula demonstrou um carinho todo especial para com os últimos dos trabalhadores na escala social. A Lei de Resíduos Sólidos representa um verdadeiro divisor de águas que se ergue entre um antes e um depois. Entre a era da pedra lascada da catação no Brasil e a solene entrada na era da modernidade, ou seja, do salto de qualidade entre catação à moda artesanal e a reciclagem propriamente dita ou profissional.
Em síntese, a Lei Lula determina que toda a cadeia de produção ligada aos resíduos sólidos deve pertencer de direito e de fato aos Coletivos de Trabalho organizados pelos catadores, quer se trate de triagem em galpões ou de cooperativas de carrinheiros, em que se combina trabalho individual na coleta e na triagem com trabalho coletivo, na sequência da cadeia produtiva, até a venda final de objetos reciclados em indústrias dos próprios catadores.
A fim de garantir condições de vida eminentemente dignas, aptas a produzir a ascensão social do catador, desde a simples alfabetização inicial até a formação universitária, o ex-presidente metalúrgico do ABC paulista, Luís Inácio Lula da Silva, estabelece em sua Política de Resíduos Sólidos o máximo de tecnologia no trabalho de catação e de reciclagem. Desde carrinhos elétricos para uma coleta porta a porta de cada residência, passando por uma triagem qualificada, servida de prensas modernas, balanças eletrônicas, esteiras, guindastes, tratores. Para a coleta e venda dos materiais, pequenos e grandes caminhões, carregadeiras, elevadores, etc. Refeições nos locais de trabalho como em qualquer empresa que se preza, cursos de formação profissional, etc.
IHU On-Line – O trabalho dos catadores de lixo sofreu alguma alteração após a implantação da Política Nacional de Resíduos Sólidos?
Antonio Cechin – Por enquanto nada mudou em Porto Alegre. Ela é apenas uma esperança, na torcida por bons projetos a fim de se angariar recursos. Lula, porém, já se adiantou destinando enormes somas de investimentos que, se bem aproveitados, farão com que os Coletivos de Trabalho entrem de vez na modernidade.
Para além da esperança, nós mesmos, através de uma boa equipe disposta a arregaçar as mangas, acabamos de ver um projeto nosso que pretende melhorar as condições de trabalho de 27 coletivos, em 17 municípios da área metropolitana de Porto Alegre, incluídos grande parte dos municípios do Vale do Rio dos Sinos e entorno. Dentro de alguns dias, com certeza, a esperança de muitos catadores começará a ser transformada em realidade.
IHU On-Line – Que tipo de lixo pode ser reciclado? E que tipo não é passível de reaproveitamento?
Antonio Cechin – A princípio, lixo só se transforma em valor quando devidamente separado. Nos galpões, por isso, só se separa e se prensa em fardos, aquilo que se vende. Desde o momento em que lançamos o primeiro Coletivo de Catadores, havia em Porto Alegre e arredores apenas duas ou três indústrias para as quais os atravessadores vendiam lixo separado. Aos poucos foram se multiplicando e se diversificando as fábricas de objetos reciclados. Então, aquilo que há uns 10 ou 20 anos não se separava porque não tinha venda, hoje, em tese, podemos dizer que tudo ou quase tudo o que é considerado lixo seco é separado e vendido pelos catadores. Exemplo típico de um produto que, até um ou dois anos atrás, não se vendia é o isopor. Hoje, sabemos de coletivos que já o vendem com a maior facilidade.
IHU On-Line – Que entendimento, em sua opinião, a sociedade tem sobre o lixo e a reciclagem?
Antonio Cechin – Em 30 anos de trabalho em Galpões com comunidades que são ao mesmo tempo ecológicas/ecumênicas/eclesiais de base, começamos a dar visibilidade aos catadores. Fizemo-lhes a apologia como sendo os verdadeiros despoluidores do planeta, pois impedem que os resíduos, depois de milênios sucessivos em que sempre foram jogados dentro dos mananciais hídricos, agora os estejam reduzindo em quantidade e volume, reaproveitando sucatas de materiais sobrantes e, finalmente, reciclando ou criando objetos novos. Os catadores, hoje, já são reconhecidos como cidadãos por razoável quantidade de pessoas. Para tanto, é natural que essas pessoas devam ter um mínimo de alfabetização ecológica.
Muito mais rápida é a caminhada dos catadores dentro de um coletivo de trabalho. Quando começaram juntos, há 30 anos, tinham vergonha de ser fotografados. Hoje, eles têm verdadeiro orgulho em posar para fotos no trabalho, porque se sentem dentro de uma profissão absolutamente necessária para a sobrevida da espécie humana na terra. Depois de se tornarem especialistas da reciclagem, têm verdadeiro orgulho em fazer palestras em salas de aula, em reuniões de operários nas fábricas ou para funcionários públicos em suas respectivas repartições.
IHU On-Line – O senhor diz que o catador de lixo é o profeta da ecologia. Pode nos explicar essa ideia?
Antonio Cechin – A figura do catador que se lança em busca dos valores escondidos nos resíduos sólidos, e com isso garantir a sobrevivência da família, é muito recente no Brasil. Não completou ainda 50 anos. E esse personagem acontece em tempos de opção pelos pobres, característica do modelo de cristianismo latino-americano de hoje. Ora, nossa Teologia da Libertação, quando fala em profeta, dentro de uma linguagem autenticamente bíblica, aponta para as duas dimensões do agir profético: denúncia e anúncio. O catador dá, ao mesmo tempo, uma boa notícia e uma notícia má a toda a sociedade envolvente. A denúncia ou má notícia está no fato do consumismo do mundo atual. É como se ele pregasse da seguinte maneira: “Vocês moradores desta cidade de Porto Alegre, com todo o consumismo desenfreado que esbanjam, estão destruindo o planeta. Poluem a natureza de maneira tal que a espécie humana corre sérios riscos de extinção!”
Depois dessa denúncia, seguiria anunciando sua boa nova:
“Olhem, contemplem o meu trabalho de amigo de vocês. Eu recolho o lixo que vocês produzem a fim de deter a poluição. Transformo poluição em valores. Devolvo matérias-primas para as indústrias fabricarem novos objetos para as pessoas. Uma tonelada de papel entregue para uma indústria papeleira são 25 árvores adultas que permanecem em pé na floresta para as gerações futuras. Uma tonelada de latinhas de alumínio devolvidas para outra indústria são 12 toneladas do metal bauxita que também permanecem no interior da terra para as próximas gerações!
Além disso, vejam a minha Comunidade Ecológica de Base constituída de catadores: diferentemente de vocês que, como capitalistas estabeleceis entre vocês relações de exploração, nós inauguramos a nova sociedade solidária, estabelecendo entre nós mesmos relações ricas em cooperação e colaboração! Nós, catadores, anunciamos a nova era, a era da Ecologia em que homem e natureza vivem uma harmonia perfeita.”
Está aí o perfil do profeta da ecologia, na pessoa do último dos homens, exercendo a mais humilde de todas as profissões!
IHU On-Line – O que seria, para o senhor, um modelo de reciclagem do lixo ideal?
Antonio Cechin – O modelo de reciclagem ideal de hoje em dia eu costumo chamar de Comunidade Ecológica de Base. Com tal designação quero significar trabalho de reciclagem ideal, com relações interpessoais também ideais. Há que reproduzir a rica experiência da república “comunista” cristã dos Guarani das Missões Jesuíticas dos Sete Povos, iniciada quatrocentos anos atrás. O povo guarani do começo do Rio Grande do Sul representou nosso Paraíso Terrestre. Hoje, nos Galpões de Reciclagem, todo nosso esforço de cristãos é reproduzir o tupãbaê, isto é, “trabalhar para Deus”, que os Sete Povos já viviam. Lá imperava o princípio básico da Terra Sem Males: “De cada um de acordo com suas possibilidades, para cada um de acordo com suas necessidades”. Foi o povo guarani que inventou o mutirão. Trabalhando nas periferias com o povo pobre vindo do interior para a capital, construíram-se capelas ou centros comunitários, fazendo pexiru, puxiru ou puxirão – segundo vocábulos de gente pobre mas que expressavam o mutirão dos índios, com palavras de acordo com o município de que chegavam em seu êxodo rural. Era sempre a mesma palavra que voltava, porém sempre um pouco diferente aqui e ali. Todas corruptelas da palavra mutirão (de potyron, termo guarani) pura e simplesmente.
Nosso ícone ecologista José Lutzemberger, de formação mais europeia, fez um trabalho inicial de conscientização para indivíduos. Nós, adentrados no modelo de igreja latino-americana, a igreja das Comunidades Eclesiais de Base, do método Paulo Freire e da Teologia da Libertação, continuamos através de um trabalho eminentemente coletivo e solidário. Conhecendo-nos, Lutz nos legou a lapidar sentença quando ministro do meio-ambiente: “Um só catador faz mais pelo meio-ambiente, no Brasil, do que o próprio ministro do meio-ambiente”.
Fonte: www.ihu.unisinos.br, 26/08/11
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